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Sobre “Gente de Trás-os-Montes “, de João de Deus Rodrigues

Na Nota de Abertura, o autor escreveu que este livro é “uma singela homenagem aos Transmontanos da Diáspora e a todos aqueles que ficaram agarrados ao torrão que os viu nascer”. Efetivamente, os catorze contos que constituem a obra relatam sempre uma história, mais ou menos enredada, mas com um fundo verosímil, sobre os transmontanos. A emigração do séc. XX, que sentiu Portugal entre os anos cinquenta a setenta, desertificou o país, sobretudo o interior que já era mais pobre, privando as pessoas dos bens essenciais e de sonhar com um futuro melhor. Nesta sequência, em quase todas as famílias, normalmente numerosas, havia sempre descendentes mais arrojados que procuravam sair do país, ingressar numa carreira militar ou ir para uma cidade, na mira de uma vida mais folgada. O que lhes era reservado, na aldeia fragosa transmontana, era, quando muito, um rebanho, para garantir a sobrevivência. Assim, cinco contos giram em torno de um protagonista que veio para Lisboa; um relata a estória de Olinda que conseguiu escapar à polícia juntamente com Maximino na sua fuga para França; outro narra a vida de Manuel Semedo que emigrara para o Brasil; seis contos retratam cenas e vivências da aldeia; e, finalmente, um outro refere a saga de um seminarista sem vocação – Carlos – que dividiu a sua vida por vários locais. Nestes catorze contos sobressaem características comuns: o amor à terra, o apego à família e o desejo de matar saudades evocado pelos que partiram. Assim, há momentos-chave que marcam e emocionam o leitor, quando se perceciona que um emigrante, visitando a aldeia, reconhece um amigo de infância e se prontifica a ajudá-lo (o gesto de Semedo para com Gregório) ou vem procurar a família e inteirar-se das suas condições – exemplo de Olinda, a “trinca-espinhas”, que singrou na vida graças à sua segunda mãe, tornando-se médica. Há nesta gente uma vontade de crescer e de emancipação, mais visível no exemplo desta última, pelo facto de ser mulher, a quem eram vedados os sonhos e o acesso a certas profissões. 
          De salientar que os que abandonavam a terra eram, geralmente, filhos de famílias numerosas e com poucas possibilidades; quando completavam o ensino primário, muitos não se contentavam com o seu futuro e procuravam outras paragens, ou outro modo de vida. Havia os que tentavam o Seminário e outros um emprego no Estado. Estes contos são, portanto, histórias de vivências e retrato de uma região desertificada que ainda hoje sofre essas consequências. Portanto, esta mapeação geográfica inscrita nos contos corresponde aos desejos de uma época: França, Brasil, Lisboa eram uma miragem e os mais afoitos partiram nesse encalço. Geralmente, saíam-se bem e eram recompensados, mas há quem tenha partido e regressado com sonhos desfeitos – caso do Quintino; os heróis da terra também têm histórias dignas de serem evocadas – exemplo do Dr. Abílio e do seu Pastor que ajudaram o pequeno José; outras são mais hilariantes: a história de Daniel, o Passarinheiro, ou do Mocho Caçador. São contos onde se aprende a crescer com a vida animal – Despertar da Puberdade – e a respeitar a Natureza numa comunhão de harmonia e cumplicidade.
O narrador, com um olhar quase ascético, relata-nos todas estas histórias do lugar, criando cenários verdadeiramente idílicos e realistas onde se cruzam sensações e sentimentos que impressionam profundamente o leitor. Numa linguagem simples, roçando, por vezes, a brejeirice, explica-nos como no passado os transmontanos viveram, sofreram e se afirmaram na diáspora. São muitas as expressões que testemunham o vocabulário e os falares (digo falares em vez de linguagens, pois é mais autêntico e permanece mais na memória) dos transmontanos que seduzem qualquer forasteiro. Neste passo, desafio o autor a catalogar as expressões mais comuns, pois constituiria um belo repositório linguístico da região.
           Numa linha de intertextualidade, podemos citar Camilo Castelo Branco (A Queda de um Anjo) em que Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda cai, quando se desloca da província para Lisboa, pois o mesmo sucedeu a alguns protagonistas dos contos que não resistiram ao encanto feminino; também Miguel Torga, pela sua raiz telúrica e pelo humanismo, se assemelha às características dos transmontanos retratados nestes contos. Com certos laivos de autobiografismo, o autor quis louvar os conterrâneos e fê-lo de uma forma exímia e comovente.
A terminar, uma nota sobre as ilustrações de Luís Manuel que abrem os contos e uma referência ao Prefácio de José Ribeirinha da Costa: duas linguagens que se complementam para o entendimento da obra: a primeira, através da imagem prepara o olhar do leitor para a leitura; a segunda, funciona como uma porta de entrada que acolhe e recebe o leitor para uma visita guiada.
 
                                                                                         Júlia Serra
CANTO O AMOR, de Manuela Morais

               Canto o Amor é constituído quatro capítulos – As Raízes, Os Afectos, À memória do Fernão e À memória do Espiga – sendo os dois primeiros uma espécie de alicerce dos outros dois, formando, no seu conjunto, as vivências do Amor ao longo dos vários tempos que plasmaram o ser. Aliado ao eixo temporal, o espaço, sobretudo a terra natal, contribuiu para a formação de uma consciência moldada nas coisas concretas da infância; hoje, sob a forma de memórias evocadas por ritmos e mistérios, elas propiciam o nascimento do sagrado.
É através do Amor que Manuela Morais nos relata o tempo passado/presente: «O Amor é, sem dúvida, o “motor” da vivência dos Seres. Amamos os que estão no nosso coração, e tudo o que cabe dentro do nosso olhar, da nossa memória, da nossa emoção e do nosso sentimento» (pp.9-10). O sujeito lírico, para além de personificar o Amor com intuito de abranger a humanidade em geral, conforme expressa a reiteração do determinante possessivo “nosso”, pretende demonstrar como esse sentimento é essencial ao Ser e à Humanidade. Por outro lado, as memórias ligam o “eu” às paisagens, às coisas que o rodeiam e aos amados que partiram, ficando no seio da amada para contemplação.
Os dois primeiros capítulos assinalam momentos de felicidade e sentimentos variados: a evocação do nascimento do País, conto mais de nove séculos (p.15); Trás-os-Montes – com a sua história “escrita nas pedras” com as vinhas, olivais, castanheiros, carvalhos e pinhais, assumindo uma identidade própria; o Meu Marão, com o aroma a alecrim e rosmaninho; o Meu Douro Maravilhado, com Sol a brilhar refletido no Rio, formando o palácio onírico regado por Baco, criando um verdadeiro “paraíso celestial”, propício aos amantes felizes. Este cenário transmontano, traduzido no poema A Minha Terra Natal, é um tempo de felicidade: “A minha terra natal/ gravou, / desencadeou memórias douradas/de tempos sagrados!” (pp22-23). Nesse tempo foi gerado um sentimento profundo com raízes metafísicas a partir do olhar: “Teu olhar/ e sorriso esplendorosos/anexam/as nossas Almas/ no tempo imemorial!...” (p.23).
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