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«Quem testemunha pela testemunha?»

by Ana Inacio

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«Quem testemunha pela testemunha
Paul Celan
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Em Auschwitz, Livia Ravek foi marcada com o número 4559. Em 2017, o seu neto, Daniel Philosoph, homenageando-a, tatuou esse número no braço para que a história com ele fizesse corpo.
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SE ISTO É UM HOMEM

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz 
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar 
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi, SE ISTO É UM HOMEM, Dom Quixote, 11ª ed., 2013, p. 7
Primo Levi (1919-1987)
Os Campos de Concentração

O campo encontrava-se cercada por duas ou três vedações de arame farpado, geralmente electrificados, intersectadas por torres de vigias, onde havia guardas armados de metralhadoras que mantinham sob vigilância, de dia e noite, o perímetro do campo. Tinha de existir apenas um portão no campo, por cima do qual estava habitualmente inscrito: Arbeit macht frei (O trabalho liberta).
Os detidos que chegavam eram levados para uma área onde eram postos de quarentena (um quarto, uma cabana ou uma tenda). Aí eram totalmente despidos; muitas vezes tomavam um duche e eram desinfectados, sendo o cabelo completamente rapado. Por fim, eram registados e tatuados. Os «números mais baixos» eram, por conseguinte, os deportados que tinham sobrevivido durante mais tempo, eram tidos em grande consideração pelos restantes e ocasionalmente eram-lhes dadas pequenas vantagens.
De seguida era-lhes dada roupa de deportados – o famoso «pijama» às riscas. Nos primeiros tempos, os deportados trocavam de roupa de modo a terem uma que lhes servisse. Nos anos finais, como já se tratava de roupas recuperadas àqueles que tinham sido seleccionados, muitas vezes não eram mais do que farrapos.
Após algum tempo, os novos detidos eram mandados para um bloco e incluídos num Kommando. O bloco era constituído por um conjunto de cabanas, geralmente de madeira, onde os internados dormiam em beliches de madeira com vários andares. Tinham de dormir várias pessoas no mesmo andar e tinham de se deitar de lado para caberem. Estes beliches podiam ter colchão, enchidos com um pouco de palha, mas o mais comum era nem sequer terem nada ou no máximo terem um cobertor. O bloco não tinha instalações sanitárias. Em certos casos, existia um balde ou uma bacia – que, quando limpa, podia servir para o «café» da manhã. 
À noite os detidos estavam proibidos de se ausentarem do bloco para irem às latrinas: aqueles que arriscavam a saída podiam ser mortos se fossem apanhados. O bloco era dirigido pelos «mais velhos» (Eltern) – escolhidos pelos guardas: era responsabilidade dos Eltern destinarem os beliches e manterem a ordem no bloco. A prática rapidamente demonstrou que os deportados «políticos» se comportavam de uma forma muito mais humana nesse papel do que os criminosos comuns. Os Kommandos eram grupos de trabalho. Alguns eram permanentes, outros temporários, dependendo da natureza do trabalho que efectuavam. Também existiam Kommandos  disciplinares. Mas o essencial na sobrevivência no trabalho não era necessariamente a sua natureza ou grau de dificuldade; era antes a personalidade do Kapo que dirigia o Kommando. Alguns desses, os criminosos comuns, agiam de forma brutal, ocasionalmente, quando o Kommando saía de manhã para o trabalho, os guardas das SS instruíam o Kapo para regressar com um determinado número de mortos; cabia-lhe a escolha das vítimas, de onde e como seriam mortas.
Cada farda tinha a marca da sua categoria; o triângulo verde indicava os criminosos comuns. Eram estes que constituíam a maioria dos kapos – em alguns casos isso levou a alguns melhoramentos nas condições de detenção.
Havia triângulos de outras cores: preto, para os «a-sociais»; castanho, para os Ciganos; azul, para os apátridas; cor-de-rosa, para os homossexuais; e púrpura para as Testemunhas de Jeová.
Contudo, o triângulo amarelo era de longe a marca mais vista e era usada pelos judeus. Eram eles que constituíam o grosso daqueles que, em Auschwitz, e depois nos outros campos, eram apelidados de «Muselmanner» (muçulmanos): particularmente fragilizados pela fome (as rações diárias eram compostas por uma tigela do famoso caldo ralo e por um pequeno pedaço de «pão», cujo número de calorias, em teoria, era calculado para não garantir a sobrevivência), a longa sessão de chamada pela manhã, as caminhadas até aos locais de trabalho, o trabalho árduo e os espancamentos frequentes, estes homens perdiam toda a dignidade de toda e qualquer consciência, à excepção da fome; perdiam a capacidade de pensar e de falar.
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