Poemas da lusofonia

MOÇAMBIQUE Mia Couto (Beira, 1955) DESLIÇÃO DE ANATOMIA Quase fui médico. Cedo acreditei ter inclinação. Aconteceu, em menino, frente aos compêndios escolares. Fascinava-me, no corpo humano,... o vocabulário em flor: o suco gástrico, o bolo alimentar, o trânsito intestinal, as papilas gustativas.

Ante o meu prematuro pasmo, a professora vaticinou: vai ser médico! Em casa, porém, meu pai diagnosticou diverso: não era a anatomia que me atraía. Eu apenas amava as palavras. Meu pai adivinhava. E eu, de poesia, adoecia.

Leitura e ilustração Beatriz Parábua

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE Francisco José Tenreiro (São Tomé, 1921 – Lisboa, 1963) &nbsp; O OSSOBÓ CANTOU &nbsp; A cavalo do vento A chuva chegou. A chuva chegou E o ossobó cantou. Cantou o ossobó Seu canto molhado - Techuva já vêo? - Já vêo siô.

Sob a folhagem amodorra e cobra preta enquanto o potro e o menino do engenho brincam e correm no terreiro os corpos molhados do canto bonito do ossobó - Já vêo a chuva? - Já vêo si siô. - Não vêo, não siô. - Ah! Já vêo que ossobó cantou.&nbsp;

Leitura e ilustração Matilde Anjos

Minha pátria é a língua portuguesa.&nbsp;

Fernando Pessoa in Livro do Desassossego

BRASIL Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, 1913 – 1980) &nbsp; PERU Glu! Glu! Glu! Abram alas pro Peru! O Peru foi a passeio Pensando que era pavão Tico-tico riu-se tanto Que morreu de congestão. O Peru dança de roda Numa roda de carvão Quando acaba fica tonto De quase cair no chão. O Peru se viu um dia Nas águas do ribeirão Foi-se olhando foi dizendo Que beleza de pavão! Glu! Glu! Glu! Abram alas pro Peru!&nbsp;

Leitura e ilustração Rúben Simões

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE Alda do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe, 1926 – 2010) LÁ NO ÁGUA GRANDE Lá no "Água Grande" a caminho da roça negritas batem que batem co'a roupa na pedra. Batem e cantam modinhas da terra. Cantam e riem em riso de mofa histórias contadas, arrastadas pelo vento Riem alto de rijo, com a roupa na pedra e põem de branco a roupa lavada. As crianças brincam e a água canta. Brincam na água felizes... Velam no capim um negrito pequenino. E os gemidos cantados das negritas lá do rio ficam mudos lá na hora do regresso... Jazem quedos no regresso para a roça.

Leitura e ilustração Letícia Silva

GUINÉ-BISSAU Vasco Cabral (Farim, 1926 – Bissau, 2005) &nbsp; CALEIDOSCÓPIO Um negro, um branco um forte abraço mútuo, o mesmo alvo sorriso. O pensamento: bandeiras verdes e brancas. Um amarelo, um negro, destinos que se ligam, o mesmo rubro sangue. O pensamento: bandeiras verdes e brancas. Um branco, um amarelo, um aperto de mãos, a mesma dor humana. O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Leitura e ilustração Rita Pereira

Um negro, um amarelo, um branco, o mesmo homem em cores caleidoscópicas: o mesmo alvo sorriso, o mesmo rubro sangue a mesma dor humana: O mesmo pensamento: bandeiras verdes e brancas!

Assinalamos o Dia Mundial da Língua Portuguesa com este trabalho que pretende celebrar a lusofonia e&nbsp;contribuir para a divulgação da riqueza da nossa língua, que conta com cerca de 260 milhões de lusofalantes espalhados pelo Mundo. Esperamos que seja do vosso agrado!

MOÇAMBIQUE Rui knopfli (Inhambane, 1932 – Lisboa, 1997) &nbsp; A CASA DA AREIA &nbsp; Face ao mar, orgulhosa no topo do areal, só madeira e zinco sobre pilares de cimento ao sabor dos quatro ventos. O quintal das traseiras sempre uma festa, frango no churrasco, alegria nos copos. Depois a Isilda casaria com o Freitas, a Ermelinda ia ficar para tia e o Horácio dava em droga. O Neca, o Tino e o Mando foram à vida, cada qual para seu lado. Na velha casa virada à baía, além do ranger da madeira batida pelo vento e a areia apenas ficaram a avó Carminda e a velha cadela "Deixa-Falar".

Leitura e ilustração Isabel Matos

Agrupamento de Escolas da Madalena Disciplina de Português

BRASIL Manuel Bandeira (Recife, 1886 – Rio de Janeiro, 1968) &nbsp; A ESTRELA Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia. Era uma estrela tão alta! Era uma estrela tão fria! Era uma estrela sozinha Luzindo no fim do dia. Por que da sua distância Para a minha companhia Não baixava aquela estrela? Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda Responder que assim fazia Para dar uma esperança Mais triste ao fim do meu dia.

Ilustração Hellen Barros

Nota introdutória Esta breve publicação, elaborada no âmbito do Dia Mundial da Língua Portuguesa, comemorado no dia 5 de maio, reúne poemas de autores nascidos em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste, que foram objeto de estudo nas aulas de Português. Cada um dos alunos da turma do 5.º D procedeu à leitura e ilustração de um poema da sua preferência. Podem aceder ao respetivo registo áudio ou vídeo clicando no ícone correspondente.

GUINÉ-BISSAU Tony Tcheka (Bissau, 1951) &nbsp; IMERECIMENTO Adormeço Na luz dos teus olhos vejo Veneza que não conheço Ondulo num círculo de ondas de levitação

Confesso: não mereço a Ternura da gôndola acariciando as águas anda a onda

Leitura e ilustração Catarina Peres

TIMOR LESTE Fernando Sylvan (Dili, 1917 – Cascais, 1993) MENINAS E MENINOS Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de meninas e meninos a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de cadáveres de meninos e meninas que morreram a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos! E então?&nbsp;

Leitura e ilustração Diogo Couto

PORTUGAL Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919 – Lisboa, 2004) &nbsp; FUNDO DO MAR No fundo do mar há brancos pavores, Onde as plantas são animais E os animais são flores. Mundo silencioso que não atinge A agitação das ondas. Abrem-se rindo conchas redondas, Baloiça o cavalo-marinho. Um polvo avança No desalinho Dos seus mil braços, Uma flor dança, Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa Leve como um lenço. Mas por mais bela que seja cada coisa Tem um monstro em si suspenso.

Leitura e ilustração Diogo Pereira

PORTUGAL Eugénio de Andrade Urgentemente Fernando Pessoa No comboio descendente Jorge Sousa Braga O universo Sophia de Mello Breyner Andresen Fundo do mar&nbsp;

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE Alda do Espírito Santo Lá no água grande Francisco José Tenreiro O ossobó cantou &nbsp; TIMOR LESTE Fernando Sylvan Meninas e Meninos

GUINÉ-BISSAU António Baticã Ferreira (Canchungo, 1939) &nbsp; O MAR O mar, esse mundo que os Homens não habitam, É imenso, tão belo e tão perfeito! O mar tem influência singular Sobre mim. Eu bem queria ir ver as ondas: Valia a pena olhá-las a correr Loucamente; valia a pena Ver qual delas primeiro entrava na baía. &nbsp;

BRASIL A. J. Cardiais (Salvador – Bahia, 1954) &nbsp; VENTO FRIO Um vento frio Invadiu O quarto… Eu dei um salto, E perguntei Se alguém sentiu. Ninguém sentiu, Ninguém viu Ninguém riu… Então, Fiquei com medo, E não dei mais Um piu.

Leitura e ilustração Rafael Fernandes

PORTUGAL Fernando Pessoa (Lisboa, 1888 – 1935) NO COMBOIO DESCENDENTE No comboio descendente Vinha tudo à gargalhada, Uns por verem rir os outros E os outros sem ser por nada – No comboio descendente De Queluz à Cruz Quebrada… No comboio descendente Vinham todos à janela, Uns calados para os outros E os outros a dar-lhes trela – No comboio descendente Da Cruz Quebrada a Palmela…

No comboio descendente Mas que grande reinação! Uns dormindo, outros com sono, E os outros nem sim nem não – No comboio descendente De Palmela a Portimão…

Leitura e ilustração Raúl Caldeira

ANGOLA João Abel (Luanda, 1938) &nbsp; APONTAMENTO curvada ao peso ao peso brutal dos blocos de pedra e os olhos no chão os olhos na terra anda na obra levando o cimento a pedra e a cal ao mestre pedreiro

e curvada ao peso ao peso da vida de lágrimas secas e sangue sem vida traz o seu filho preso nos panos nas costas curvadas ao peso brutal do cimento e da areia que leva cantando ao mestre pedreiro.&nbsp;

Leitura e ilustração Luana Costa

ÍNDICE DE AUTORES E POEMAS &nbsp; ANGOLA João Abel Apontamento Ondjaki Ser Ser &nbsp; BRASIL A. J. Cardiais Vento Frio Cecília Meireles Na chácara do Chico Bolacha Manuel Bandeira A estrela Vinicius de Moraes Peru &nbsp; CABO VERDE Aguinaldo Fonseca Canção dos rapazes da ilha Yolanda Morazzo Barcos&nbsp;

GUINÉ-BISSAU António Baticã Ferreira O mar Tony Tcheka Imerecimento Vasco Cabral Caleidoscópio &nbsp; MOÇAMBIQUE José Craveirinha Café Mia Couto Deslição de anatomia Rui knopfli A casa da areia&nbsp;

PORTUGAL Eugénio de Andrade (Fundão, 1923 – Porto, 2005) &nbsp; URGENTEMENTE É urgente o amor É urgente um barco no mar É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.&nbsp;

Leitura e ilustração Francisco Tavares

MOÇAMBIQUE José Craveirinha (Maputo, 1922 – 2003) CAFÉ Muito de manhã ajunto à xícara o respectivo pires uma colherinha e o café. A mim mesmo peço que vá buscar o açucareiro. Uma. Duas. Três colheres de açúcar. Mexo. Provo. Está doce. E na incongruente imensidão da casa lacônico vou sorvendo ............................................................. Tudo amargo.

Leitura e ilustração Beatriz Moreira

BRASIL Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901 – 1964) &nbsp; NA CHÁCARA DO CHICO BOLACHA Na chácara do Chico Bolacha o que se procura nunca se acha! Quando chove muito, O Chico brinca de barco, porque a chácra vira charco. Quando não chove nada, Chico trabalha com a enxada e logo se machuca e fica de mão inchada.

Por isso, com o Chico Bolacha, o que se procura nunca se acha. Dizem que a chácara do Chico só tem mesmo chuchu e um cachorrinho coxo que se chama Caxambu. Outras coisas, ninguém procura, porque não acha.

Leitura e ilustração Rafael Pinheiro

CABO VERDE Yolanda Morazzo (São Vicente, 1927 – Lisboa, 2009) BARCOS Nha terra é quel piquinino É São Vicente é que di meu Nas praias Da minha infância Morrem barcos Desmantelados. Fantasmas De pescadores Contrabandistas Desaparecidos Em qualquer vaga Nem eu sei onde.

E eu sou a mesma Tenho dez anos Brinco na areia Empunho os remos... Canto e sorrio... A embarcação: Para o mar! É para o mar!...

Leitura e ilustração Francisca Cruz

ANGOLA Ondjaki (Luanda, 1977) &nbsp; SER SER seja ruído seja beijo seja voo seja andorinha seja lago seja pacatez de árvore seja mármore de elefante seja alma de gaivota seja luz num olhar seja um cardume de tardes e grite: JÁ SOU

Leitura e ilustração Martim Carmo

CABO VERDE Aguinaldo Fonseca (Mindelo, 1922 – Lisboa, 2014) CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA Eu sei que fico. Mas o meu sonho irá pelo vento, pelas nuvens, pelas asas. Eu sei que fico Mas o meu sonho irá ... Eu sei que fico Mas o meu sonho irá Nos frutos, nos colares E nas fotografias da terra, Comprados por turistas estrangeiros Felizes e sorridentes. Eu sei que fico mas o meu sonho irá ...

Eu sei que fico Mas o meu sonho irá Metido na garrafa bem rolhada Que um dia hei de atirar ao mar. Eu sei que fico Mas o meu sonho irá ... sei que fico Mas o meu sonho irá Nos veleiros que desenho na parede.

Leitura e ilustração Martim Félix

PORTUGAL Jorge Sousa Braga (Cervães, 1957) O UNIVERSO Uns dizem que é aberto Outros que é fechado Outros ainda que é plano Cada um consoante o seu desejo Para mim o universo Tem a forma de um beijo

Leitura e ilustração João Cardoso

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