Livros, prosas e possibilidades

Watercolor texture 3

Ao endossar o fato de que atribuições comumente feitas a homens e mulheres, meninos e meninas são construções sociais, e desse modo, podem ser questionadas e subvertidas, esta obra aponta estereótipos impostos à cada gênero, desconstruindo-os e demonstrando o quanto, embora hegemônicos, não são representativos de corpos e de experiências de maneira universal e, assim, podem ser constantemente negociados.

Os trabalhos com as múltiplas formas de existir e de se relacionar são componentes fundamentais de currículos e de projetos educativos, em todos os ciclos e espaços. Historicamente, esses aspectos das formações constitutivas das experiências nas infâncias e durante todo o percurso de vida têm sido apagados das pautas de diversas instituições, silenciamento esse legitimado por parte do poder público e da sociedade civil a partir de pactos narcísicos que visam manter desigualdades estruturais como LGBTfobia, racismo, capacitismo, machismo e o sistema meritocrático. As obras e autorias que foram aqui elencadas têm por intuito contribuir com esse processo de emancipação política e cultural de cada pessoa em âmbito coletivo, pois das alianças irrompem-se brechas e frestas de possíveis vários.

Buscando estar em harmonia aos ambientes em que se encontra, Clóvis adapta-se às circunstâncias como um camaleão. Em seus percursos, depara-se com entraves e desafios e, à medida em que os atravessa, vai se deparando com o que/quem verdadeiramente o constitui. Assim, nota o quanto se forçar a encaixar em normas afasta-o do equilíbrio em relação a si mesmo, esse sim fundamental para seus caminhos, não importa quais sejam. Essa obra constitui um mote interessante para abordar questões relativas às idiossincrasias e à liberdade de existências, mostrando o quanto somos expostos a repetições que, apesar de massivas, não são a única via possível.

Eram dois coelhinhos brincando. Explorando espaços, movimentos e minúcias cotidianas. Celebrando a afetividade dos encontros. De repente, uma presença tempestuosa muda o curso de suas experimentações e, de maneira surpreendente, as personagens mostram que a potência das imprevisibilidades pode desestabilizar até mesmo quem se apresenta na vida de maneira mais sisuda e intransigente. Interessante para refletir sobre padrões, suas arbitrariedades e, sobretudo, sobre as energias vitais que transgridem muros e celebram nas frestas as encantarias que movem afetos.

Acompanhando a divertida descoberta de palíndromos, essa história traz de maneira trivial os encontros de uma família que estabelece relações para além de seu núcleo, sendo composta, dentre outras pessoas, por um casal gay. Esse vínculo não é aprofundado no enredo, entretanto sua aparição, meio a outros desenrolares da trama, é algo interessante, pois por vezes as crianças não vivem a diversidade em casa, no sentido de terem pai e mãe cis, mas estão em contato com corpos e afetos dissidentes em seus entornos, podendo falar dessas experiências coletivamente.

Histórias, prosas e possibilidades

Enredos diversos e tessituras com crianças Dani Silva Caitano Psicóloga, psicanalista, AT e professora

Nito era visto como uma criança que chorava muito, por tudo. Um dia seu pai diz a ele que "acabou o chororô, homem não chora, você é macho". A partir daí, Nito passa a "engolir o choro" em diversas situações e, sentindo-se pesado por tantas emoções guardadas, deixa de correr e brincar como antes. A família percebe sua mudança e o leva ao médico, uma figura que o acolhe e afirma que ele pode colocar para fora o que o incomoda, chorando e expressando-se por meio dessa linguagem corpórea. Dessa forma, cristalizações em torno de "ser homem" são quebradas, e, além disso, essa obra de Sonia Rosa possibilita debates acerca de masculinidades, feminilidades, feminismos e aspectos tidos como "feminilizantes" e como esses aspectos são vistos socialmente, considerando também outros marcadores sociais da diferença, como pertencimentos étnicos e sexualidades.

O que aparentamos ser está sempre em relação com o que sentimos e desejamos? O que é considerado perfeição e o que/quem é visto como falha? Numa sociedade de perdedores e ganhadores, avaliações e categorizações constantes, que espaço há para manifestar posicionamentos genuínos e dissidentes? Ao percorrer as páginas deste singelo e polêmico livro, iremos nos deparar com essas e outras questões necessárias à urgente democratização das existências em suas pluralidades.

Júlia é taxada por sua família como moleca, dada a maneira como conduz algumas situações. Confrontada com esse rótulo, descobre, nas frestas de um encontro frugal, que nossos quereres escapam a compreensões e aprisionamentos, sendo possível inventar o que não deseja ser convencionalmente denominado.

Dialogando com a questão de que as diferenças binárias são limitantes e limitadas quando pensamos na complexidade das relações de vida que podemos ensejar, Ana e Paula, as avós que partilham miudezas cotidianas reunidas nos afetos e peculiaridades de cada uma, costuram uma singela narrativa meio a ilustrações compostas por elas e seus netos. Assim, mostram-nos que os meandros de existir aconchegam muito mais do que podemos ver de antemão.

Elmer estava cansado de ser um elefante diferente dos demais. Suas cores vibrantes destoavam muito do cinza da maioria de seus companheiros, fazendo com que ele se sentisse evidenciado em relação aos outros. Depois de pensar sobre a questão, Elmer realiza um artifício para ficar monocromático, o que lhe traz uma importante descoberta sobre si e seu lugar no mundo. 

Essa ovelha cheia de cores nos convida a festejarmos a alegria de sermos quem somos, com a certeza de que encontraremos um lugar em nós para sermos amadas. Nas andanças de suas descobertas, Colorida passa por cenários deslumbrantes, compondo cenários que alargam nossos horizontes e nos divertem com ilustrações inusitadas. O trabalho a partir dessa obra pode possibilitar que as crianças aprofundem-se em relação à autoconfiança, ao respeito às diferenças, à expressão de sentimentos e de ideias, além de promover reflexões acerca de conflitos individuais e coletivos.

Era uma vez uma princesa que, ao vir ao mundo, recebeu o nome de João. Decorridos alguns anos, a criança quis que a chamassem de Joana. Enquanto o rei e a rainha tentavam em vão mudar essa situação, Joana tecia o desejo de "ser uma garota como as outras". Para realizá-lo, viajou à procura do arco-íris mágico que, segundo a lenda, podia fazer com que meninos passassem a ser meninas. Essa obra aborda a importante consciência de que as crianças podem afirmar quem querem ser e de que maneira desejam ser tratadas, contrastando com ideias autoritários de determinação de seus corpos e existências a partir de parâmetros adultocêntricos e castradores.

Monstro Rosa não se sentia pertencente ao lugar em que estava. Era diferente dos outros habitantes mesmo antes de nascer. Nesse local, a paisagem e os seres eram todos brancos. Como não cabia em sua casa, Monstro Rosa dormia abraçado à ela e sonhava que descobria territórios diversos. Até que um dia ele decidiu viajar e encontrar novos horizontes.

Ainda que possam ser tecidas críticas quanto a estereótipos de gênero presentes neste enredo, trata-se de uma referência no que diz respeito a uma família composta por dois pais. O título pode dar margem a comentários das crianças acerca de pais e de padrastos e, novamente, pode ser frequente a questão de como Olívia nasceu, uma vez que não há mãe(s) envolvida(s) na história. Mesmo crianças pequenas trazem variadas hipóteses acerca de seus nascimentos, porém a maioria delas está calcada sobre o que acham ser um fato, ou seja, de que bebês vêm das mães/mulheres. Dessa forma, essa leitura oferece a possibilidade de elaborar novas conjecturas sobre o início da vida/de vínculos afetivos, ampliando descobertas e possibilidades.

Esta obra versa sobre as poéticas da infância, suas possibilidades, encantamentos e inventividades. A trama apresenta ilustrações exuberantes, que primorosamente dialogam com as narrativas de avó e criança, banhadas em sabedorias ancestrais. Para conversar sobre desejos, sonhos, tempos e relações, a partir do que uma ampla gama de projetos podem ser construídos.

"O que pode um corpo?" Monstro Azul parece estar imbuído dessa pergunta ao longo dessa história. Depois de experienciar um contexto que que suas companhias pareciam perfeitas e adequadas quanto a seus corpos e funções, descobre que o que parecia indefectível também apresenta falhas e pontos a serem aprimorados, e o que é visto como faltante pode se expandir em afetos e possibilidades.

A importância de representar o cotidiano de uma família com duas mães como algo corriqueiro, parte de uma trama de acontecimentos coletivos do dia a dia, com ações comuns, torna esse livro potente e necessário. Além disso, tal leitura permite-nos expandir pensamentos e considerar que durante a vida podemos construir variadas maneiras de nos relacionarmos afetivamente conosco e com as pessoas, rompendo com a premissa de que laços sanguíneos são mais legítimos do que aqueles que não passam pelo campo biológico. A impermanência e constante mutação da vida convida-nos a constituir novas formas de afetar-nos, para além de determinismos e de obrigatoriedades. Ao se deparar com essa obra, as crianças podem expor questionamentos como: mas essa criança não tem um pai? Então de onde ela veio?, os quais podem servir como ponto de partida para interessantes conversas e investigações.

Trazendo a importância de narrativas que apresentem eventos prosaicos ao abordar assuntos referentes às diversidades, esse livro mostra um dia qualquer na vida de uma família que, como todas as outras, enfrenta delícias e dores inerentes a formações e aprendizados compartilhados. Assim, representa uma manifestação de liberdade pelos direitos fundamentais das infâncias e pela existência de configurações familiares diversas.

Weza compartilha conosco narrativas de seu diário de bordo, chamado por ela de "caderno afrolúdico", construído em viagens feitas por Congo, Angola, Moçambique e África do Sul na companhia de suas duas mães. Ao longo das páginas, compartilha experiências vividas nesses países, apresentando brincadeiras tradicionais de cada localidade, além de evidenciar algumas palavras oriundas do continente africano. Nesse sentido, rompe com imagens e discursos estereotipados a respeito desses países, trazendo perspectivas ancestrais e decoloniais tão caras ao reconhecimento de africanidades como aspectos genuínas dos processos formativos de brasileiras/os.

Nossas existências em muito extrapolam o sistema binário de sexo-gênero que nos é imposto historicamente desde antes de nascermos. As duas palavras que dão título a essa obra, cotidianamente utilizadas para classificar infâncias, não resumem histórias nem representam escolhas. Quem somos e o que sentimos são perguntas que não podem ser respondidas de maneira definitiva e acabada, pois nossas andanças na vida são permeadas por constantes transformações. Com sensibilidade e perspicácia, esse livro busca celebrar liberdade, diversidade e respeito, valores fundamentais na formação de todes.

Logo na capa essa obra suscita comentários e questionamentos: por que uma criança identificada como menino está em um fundo rosa, e, ainda por cima, usando vestido e sapatos de salto? Tal enredo permite dialogar sobre diferenças, singularidades, corpos e expressões, permitindo que as crianças (e também quem as cerca) pensem sobre estereótipos que podem trazer em seus discursos e existências, dado o contexto sociocultural em que estão inseridas, de modo a construir novas referências e reflexões que podem passar a compor suas experiências.

Inspirada pela história que conta que quem passar por debaixo de um arco-íris pode mudar de gênero, a autora explora, meio à delicadeza de cores aquareladas e à expressividade de corpas, a amplitude de narrativas, enredos e trajetórias que podem acontecer nas dobras, bordas e andanças da vida.

Como uma moça poderia se recusar a casar com um príncipe a quem ela havia sido prometida desde seu nascimento? Poderia alguém considerada nobre como ela apaixonar-se por uma costureira? Assim como em "Joana Princesa", Janaína Leslão apresenta outras possibilidades de existir ainda que se utilizando de elementos da estrutura clássica de contos de fada.

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